Hamurabi foi imperador da então Mesopotâmia há já perto de 4.000 anos. Hoje, poucos saberiam da sua existência e ainda menos lembrariam o seu nome, não fora o Código de Leis, o primeiro conhecido da história, elaborado no seu tempo para unificar o império e garantir a ordem nas relações sociais entre os seus súbditos, o qual, escrito numa pedra grande de diorito, hoje se encontra no Museu de Louvre, em Paris. Destinado, conforme palavras do seu introito, a “fazer prevalecer a justiça sobre a Terra”, o Código listou centenas de “sentenças” que, nas circunstâncias do presente, aos olhos do cidadão médio de hoje, constituiriam a legalização da mais abjecta barbárie: por exemplo, ao homem que cegasse ou partisse os ossos de outro, fazia-se-lhe o mesmo, a menos que aquele fosse de classe superior e este simples plebeu ou escravo, caso em que o “criminoso” apenas pagava simples “trocados” em prata; se batesse, matando, uma mulher, matava-se a filha do “assassino”, a menos que a vítima fosse plebeia ou escrava, caso em que também o dispêndio de uns simples “trocados” em prata, resolviam o assunto. Designado por Código de Hamurabi e como tal conhecido e tomado como exemplo e referência em toda a extensão de reinos e impérios que se foram sucedendo ao longo de séculos, perpetuou, como nenhum outro feito seu, o nome do seu criador.
Reminiscências dessa barbárie costumeira consagrada em lei prolongaram-se por milénios nas leis próprias dos sucessivos impérios, reinos e repúblicas que a história foi conhecendo: a pena de morte para quem mata ainda é lei em muitos países, mesmo dos ditos mais civilizados; O Código Penal Português ainda há poucas décadas consentia implicitamente que o “homem casado que achar sua mulher em adultério” a pudesse matar, ou ao amante, ou aos dois, apenas lhe impondo o “sacrifício” de ter de permanecer por seis meses fora da comarca da residência; o mesmo era concedido à mulher traída que “no acto” matasse a concubina, mas, neste caso, apenas se esta “teúda e manteúda pelo marido na casa conjugal”, podendo, nessa situação, matar também o marido, ou a ambos. Só após o 25 de Abril (em 27/05/1975) este preceito, que “conferia um autêntico direito de matar”, foi revogado. São, porém, essas normas, ainda que intoleráveis no mundo de valores e sensibilidades prevalecentes nas sociedades contemporâneas tidas por civilizadas, meras reminiscências excepcionais de um passado remoto, a macular, de algum modo, os ordenamentos jurídicos internos dos respectivos países. Nestes, todavia, mesmo a “legítima defesa”, para o ser, terá de ser a necessária, adequada e proporcional, perante “agressão actual e ilícita”, pois, não reunindo essas características, será essa defesa ilícita e condenável. Não acontece, contudo, assim com as normas, e sobretudo com as práticas, que norteiam as relações entre os Estados; aí continua a imperar muitas vezes a Lei de Taleão, “de olho por olho, dente por dente”, ou mesmo muito pior que isso; aí vigora o “direito internacional de retaliação e de legítima defesa” que podem exercer-se, ou ficar em suspenso para ser exercidos, por longas semanas meses ou anos, após a ofensa ou agressão inicial, ou após cada uma que a essa suceda, matando centenas de milhar e fazendo sofrer milhões, matando cem ou mais por cada um morto nessas iniciais e sempre bárbaras ofensas e agressões, sejam adultos ou crianças, homens ou mulheres, a grande maioria inocentes, tudo isso feito, segundo a propaganda de cada um dos lados e de seus prosélitos, tantas vezes cegos e ensandecidos pela paixão e pelo sectarismo, tudo isso feito, advogam, ao abrigo e no mais escrupuloso respeito pelo direito internacional. É a institucionalização, a esse nível, nos nossos dias, da barbárie mais hedionda, desumana e mortífera. Tudo, em defesa de princípios, valores e práticas num lado, em simultâneo com a defesa ou apoio, pelos mesmos contendores ou apoiantes, de valores e práticas contrárias noutro lado. Sempre ao serviço do Poder enquanto instrumento de, quase sempre inconfessáveis, interesses. Até onde nos levará esta temerária loucura, indomável e sem freio?
Barbárie e direito internacional
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