Se esta ponte falasse…

Apetece-me falar de pontes velhas, com memórias grandes e cheias de peripécias, pontes que ligam margens para aproximar comunidades e vidas, economias e culturas. Apetece-me falar da centenária ponte de Alvarenga por causa de um amigo, que, numa troca de ideias trouxe para a discussão a velha ponte de Alvarenga de uma forma tão poética e humana que não resisti. Só tenho que agradecer ao amigo Fernando Sómer (2024.XI.03) a quem peço emprestado a reflexão para esta crónica cool: “E viva a velhinha Ponte de Alvarenga que para além da sua beleza é de uma utilidade inescapável. Talvez tenham sido os grandes festejos da beatificação de D. Mafalda em 1793 que levou à conclusão dessa ponte, para a passagem segura de todos os ilustres convidados de Tarouca, Salzedas e Lamego”.

A troca de ideias entre dois amigos arouquenses remete para uma longa curiosidade sobre a nossa terra, a nossa vila e as nossas gentes. Uma curiosidade que nos levou a fazer muitas e ricas viagens por este território, descobrindo terras, aldeias e casas, personalidades e estórias de deixar a respiração suspensa. Já nessa altura a ponte de Alvarenga apresentava-se como marca arquitetónica de elevado valor simbólico e funcional. Quando serpenteávamos a velha estrada que liga a Vila de Arouca ao centro de Trancoso (antiga Vila de Alvarenga), a velha ponte de granito avança sobre nós, primeiro sob a forma de uma massa compacta e indiferenciada da paisagem, mas com o aproximar, lá está ela, encaixada nas ravinas fundas com o seu arco majestoso e sublime sobre as águas irrequietas do Paiva, indicando o caminho seguro até Alvarenga.

A velhinha ponte de Alvarenga é assim um marco de passagem entre duas terras, duas comunidades, dois mundos que vivenciavam rivalidades e afirmavam identidades culturais que se acreditavam distintas e nobres. Infelizmente, os tempos não lhe estão de feição, ignorada e sublimada a velha ponte de Alvarenga cede o lugar simbólico a uma ponte de nenhures, feita de ferro e vidro, transparente e estúpida porque não liga nem abraça. Lançada em cota alta em direcção ao nada e ao nenhures tem uma ambição estética de ser obra de arte, representação artística dos lugares de consumo, ou manifesto da frivolidade e dos prazeres globalizados.

Uma ponte antiga de granito velho que liga duas margens com lugares e terras distantes e diferenciadas pela dificuldade da topologia e das águas bravas do Paiva; de um lado, Arouca com a sua Vila monástica terra de muitas beatas e credos; do outro lado, a vila de Alvarenga com sua praça e pelourinho a atestar que era terra com foro próprio de homens bons e honrados.

Afinal, para que servem as pontes!

Umas são monumentais e trabalhadas, outras simples e funcionais, outras pobres em detalhes consoante a sua invocação e o seu propósito. As pontes são mágicas e belas, construídas em lugares de arrepiar a pele, outras, são amplas e suaves a deslizar por entre as nuvens. Outras são altaneiras sobre casarios antigos e densos. Outras são imaginárias e imateriais como o pensamento.

As pontes também servem para brincar, para imaginar, para saltar as margens e são ligantes e estruturantes de imaginários suspensos entre as neblinas do amanhecer. As pontes fazem parte do nosso imaginário infantil. As crianças adoram fazer pontes. Adoram construir pontes sobre rios imaginários.

E com essas pontes as crianças são gigantes que saltam montanhas e vales, rios e oceanos, terras e continentes ligam o céu à terra, o divino ao carnal. As crianças quando brincam contemplam a vida inteira. São mágicos que abraçam mundos cujas naturezas são polifónicas e diferenciadas, livres e apaixonadas. As crianças são poetas que desenham na terra e constroem o mundo por inteiro.

Construir pontes é ultrapassar as margens, é habitar a fronteira do outro que nos estende o abraço e nos dá acolhimento. É romper com o medo e o ódio, é lançar braços para além da espuma dos tempos na esperança de encontrar o outro, que, nos espera na margem sublimada e sofrida.

Este mundo precisa de construir pontes que façam sentido, que nos liguem ao outro lado, que nos permitam abraçar o outro sem medos e constrangimentos de natureza ou de cultura. Pontes ligantes. Que não sejam objectos de puro hedonismo. Que não nos levam ao nenhures. Que são vazias de abraços

e ausentes de sentido ontológico. As pontes não são construções de vidro. As pontes não são transparentes e de olhos vazios. As pontes não podem ser um objecto lúdico ou uma simples afirmação de vaidades políticas ao serviço de personagens. Onde reina a artificialidade alienada e gloriosa do vazio político, imposto pelos mercados globalizados e indiferentes à vida local e regional. As pontes são marcas e estruturas funcionais ao serviço de civilizações.

Infelizmente, as pontes de hoje são banais e efémeras. Não têm utilidade e não apontam caminho algum. São pontes suspensas no tempo que nos negam o caminho do futuro e nos aprisionam num hedonismo destruidor e macabro. É urgente construir novas pontes em cima das velhinhas pontes. Ligar o velho ao novo, a pré-existência ao desafio de construir sem ignorar o que já se fez de vida e de sonho. Fernando Matos Rodrigues

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