Hoje vou falar da memória, da minha memória e da memória dos outros. A memória pode ser individual ou colectiva, social ou cultural. Há quem diga que só temos uma memória -, a memória colectiva e histórica, fundadora de ethos e de pathos, fundadora de tempos imemoriais, fio linear e complexo de vida.
As memórias são sempre as memórias dos outros em interação com a nossa vida. As nossas memórias são as memórias com os outros, daqueles que connosco viveram, brincaram e partilharam a casa, a rua, a escola, a praça e o café. Nos deram a saborear a vida, a paixão e o amor. A memória pode ser real, imaginária e virtual, pretérita e imperfeita. A memória é toda ela um palácio de vidas vividas e partilhadas, simples ou complexas, ingénuas ou criativas, transparentes e lúcidas, amargas ou coloridas.
É através do uso da memória que somos capazes de imaginar o nosso território e dessa imaginação construir um mapa mental, suporte de usos, de vivencialidades e de experiencialismos em contexto de forte interação, classificados como ambientes domésticos ou colectivos, privados ou públicos. Esta simbiose psicossociológica patrocina a nossa identidade social, mas não determina o nosso carácter, a nossa personalidade, a nossa identidade como sujeito individual.
As memórias são edifícios geográficos, com coordenadas e orientações necessárias para o habitar uma casa, uma rua, uma praça ou um território. Com ela podemos circular, inventar e reinventar mapas e lugares, repetir caminhos e escolher trajectos. Falar com quem nos interessa ou desviar o olhar como quem não vê o que vê. Só o bom uso da memória nos permite saborear os tempos e os modos, escutar a palavra, sentir a voz meiga e conhecida de quem nos convoca para a vida partilhada e comungada.
As nossas primeiras memórias são memórias íntimas e em família, com aqueles que estão na nossa origem e nos deram a vida, nos traçaram destinos e nos possibilitaram a construção de um mapa antropológico, origem da nossa pessoa singular e humana. As nossas memórias remetem para os nossos avós, os nossos pais, os nossos irmãos, os nossos parentes e os nossos vizinhos. São as pequenas “coisas” da vida que nos integram na família e na comunidade, que nos ligam ao local e dessa forma também somos habitantes do global. Falar de memória não é viver do passado, mas comungar dessa reactualização critica do passado-actual, uma espécie de compromisso social onde reina a natureza e o mistério humano.
A memória é uma espécie de elástico, que esticamos para ali e para acolá, numa variável de orientações e de extensões sem fim à vista. Um elástico que me leva de casa para a rua, da rua para a serra e da serra para o mundo; que me permite escutar as vozes, as falas, os passos, as gargalhadas, os medos, as alegrias e as tristezas da vida daqueles que já partiram mas que vivem entre nós em memória-celebrada. Desço as escadas da velha casa na Rua de Santo António e dou os primeiros passos em direcção ao Largo. Ouço o bater dos martelos nas solas, o cheiro a cola e a cera entram-me pelo corpo, as vozes dos sapateiros-remendões ocupam a rua. O sol está alto e quente. Na capela já não se fazem rezas nem missas.
A Casa Amarela ainda serve fígado com cebolada, o vinho sai da pipa em caneca e malga. Por detrás do balcão a Dona Emília, governa como abadessa na sala de capítulo. Uma mulher, uma voz, uma mãe, uma amiga atende clientes enquanto cuida dos vizinhos. Uma liturgia do quotidiano, celebrada entre vizinhos e clientes, entre os da rua e os de fora. No Café Guilhar, o Sr. António serve cafés e cálices de aguardente, enquanto os seus clientes jogam os matrecos e atiram ao bilhar.
O homem máquina instalado no rés-do-chão, na casa-sobrado da família Cardoso, de frente para a velha capela faz da sua caixa escura o fio da modernidade que nos liga à Paris de Baudellaire. A fotografia: imagem produzida por uma máquina representa o advento da era moderna. No seu pequeno estúdio o Senhor Claudino é sem dúvida o homem da caixa escura, da reprodução mecânica enquanto suporte de imagem. A fotografia é afinal um pequeno objecto que se leva na mão, que se pendura na parede, é um objecto de culto que tem de ser visto e contemplado por parentes, amigos e estranhos. Numa sala lá está a fotografia dos pais, num cenário de grande celebração familiar. A fotografia ganha centralidade e permite a inclusão de uns e a exclusão de outros. A parede, a mesa e a cómoda repletas de fotografias da família, dos parentes e amigos passam a dominar o espaço doméstico e público. O preto e o branco definem o campo da representação.
Quem desce a Avenida para a Praça Brandão de Vasconcelos depara com a estação das Bombas de Gasolina da Lusitânia. Um sinal da vida moderna que se fazia nas cidades. Lembrando que o carro e a vida mecânica seriam absolutamente dominadores. Cara-a-cara homem e carro teriam de se entender na partilha do espaço público. A vida moderna de Arouca seria determinada por mais movimento, mais barulho e mais velocidade. Para isso contribuiu a empresa Calçada & Filhos e a Feirense com as suas camionetas a ligarem a Vila de Arouca ao Porto. Estas empresas foram obra de homens sonhadores, trabalhadores e comprometidos com o progresso de Arouca. Destaco o Sr. Albino Calçada pela sua força cósmica e humana, pela sua energia contagiante e mobilizadora.
Mais uns quantos espaços, estico o fio da memória e deparo com a monumental Pensão Alexandre e o Café Luso. Espaços centrais da vida urbana na minha vila. Para entrar no Café Luso era necessário passar pelo “Gaio”, um pointer inglês de porte altivo e vigilante, companhia fiel do Armandinho dono do café.
Termino a minha viagem na biblioteca da Gulbenkian, meto dois dedos de conversa com a D. Luísa de Brito, a Luisinha como gostava de ser tratada pelos jovens, bibliotecária responsável pela guarda deste espaço luminoso que nos ligava ao mundo da universalidade humana. Esta pequena biblioteca, com um salão repleto de livros em estantes castanhas de madeira era a nossa Torre de Babel.