Tipicamente, a cada Ano Novo, fazemos votos e promessas. Este ano, talvez por falta de descanso, ao invés de desejos sinto-me inclinado a apresentar um conjunto de rabugices. Afinal, bem vistas as coisas, serão também votos de transformação (mas em modo velho do Restelo). Para não dar tónica apenas à desesperança, acrescento algumas sugestões um ano em boa companhia.
Começo por uma arrelia linguística: o fenómeno público, irritante, de formular frases sem sujeito. Tipicamente surge no começo de frases com um verbo no infinitivo. Quem nunca ouviu um “Falar sobre”, “Apresentar agora” ou “Acrescentar ainda”. Mas quem fala, apresenta ou acrescenta? São frases para ficar no ar, sem que alguém as assuma? Fica o sujeito posto de lado, sujeito a desaparecer. A somar, o fenómeno acompanha com pessoas que se referem a si na terceira pessoa do singular (ou via um qualquer título). É certo que, como afirmou Shakespeare, “O mundo inteiro é um palco (…) E cada um no seu tempo representa diversos papéis.”, mas não nos afastemos tanto da nossa pessoa.
Para cuidar destas e outras maleitas (e curiosidades) da Língua, sugiro os livros “Queria? Já não quer?”, de Marco Neves, e “O mundo pelos olhos da Língua”, de Manuel Monteiro; bons exemplos de como podemos explorar a língua portuguesa de modo divertido.
Agora, coletivizando o foco no sujeito abstrato, deixo a minha embirração sobre como o espaço público é pensado em função do carro. Hoje, o urbanismo continua a priorizar os carros ao invés do peão. Os carros tomam ruas e impedem praças. Para imaginar o quão diferente seria, pensemos no que poderia ser uma nova praça em Arouca, no espaço em frente à Cooperativa, como continuação urbana do parque municipal e como espaço de lazer, cultura e restauração. Infelizmente, por agora, esse espaço é ocupado por uma rua que serve o estacionamento (quase dedicado a um supermercado) e que traz uma confusão irritante ao centro da vila. Poderemos ainda, neste exercício imaginativo, relembrar o prazer de caminhar na Avenida 25 de Abril ou na Alameda Dom Domingos nos momentos festivos em que um sujeito não é empurrado para a berma.
Existe, desde 2023, uma Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal (sem meios nem recursos), mas os municípios nem deveriam precisar disso. Olhemos casos de sucesso, como o de Pontevedra, na Galiza, e como esse sucesso é reflexo das opções políticas sobre o espaço público. Aconselho a descobrir um pouco mais sobre “Mobilidade Amábel” no site deste Concello (em pontevedra.gal). O espaço público precisa ser promovido, garantindo mobilidade sustentável, acessibilidade e qualidade de vida. Iniciativas como a do provedor do peão (previsto na ex-futura Estratégia Nacional) ou órgãos de aconselhamento municipal poderiam identificar problemas, promover soluções, educar e sensibilizar ou mesmo intermediar conflitos.
Por fim, um outro assunto onde o sujeito anda desaparecido: a participação pública. As dinâmicas sociais atuais alteraram-se e, talvez resultado disso, vemos uma menor participação cívica. As associações têm menos atividade, os partidos menos membros e os bancos das assembleias municipais ficam vazios. Precisamos repensar a participação social, olhando a exemplos de sucesso como a Convenção Cidadã para o Clima (Convention Citoyenne pour le Climat), implementada em França em 2019-2020, que deu voz direta a cidadãos comuns na formulação de políticas públicas.
Não deixemos que o sujeito se sujeite a desaparecer – seja na língua, no espaço público ou nas decisões comunitárias. E, finalmente, perdoem-me a rabugice de início de ano. No final de contas, é “coisa que não edifica nem destrói” (vai daí, nome de um excelente livro e podcast do Ricardo Araújo Pereira, que sempre ajuda a animar o espírito).