O povo é quem mais ordena…

“Grândola, Vila Morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade…” (Zeca Afonso)


Falar de política local é falar de democracia, de liberdade e de participação. Com a Revolução do 25 de Abril de 1974 foi possível democratizar a vida local e garantir aos seus cidadãos a capacidade de decidir sobre o seu futuro e de escolher os seus representantes para executarem o caminho que consideram mais justo e digno para a sua terra. Ao mesmo tempo que o poeta-cantor-militante, o Zeca entoava: o povo é quem mais ordena.

Em Arouca não vai ser fácil construir uma sociedade justa e livre, fraterna e igualitária, por causa dos constrangimentos do passado que persistem; plasmados numa sociedade local sem uma rede escolar forte e qualificada, sem o acesso à saúde gratuita, à cultura e ao conhecimento, com taxas de analfabetismo muito elevadas, uma população que vê na migração e na emigração a única forma de mobilidade social. Sem falar dos obstáculos físicos que nos dificultam o acesso às cidades cosmopolitas de Aveiro, Coimbra e Porto.

Independentemente dos constrangimentos pré-modernos que habitavam em Arouca, foi possível garantir de uma forma formal e mais ou menos orgânica, a vida democrática que o novo regime exigia e implementava por força da Lei Constituinte (CRP76). A política local nestas últimas décadas de regime democrático foi extremamente rica em participação, em discussão, bem como na procura de uma alternativa que garantisse a construção desse futuro. Contudo, essa passagem não foi feita sem concessões, houve momentos de grande cumplicidade e compromisso entre o mundo novo que se conquistava e o mundo velho que se derrotava.

Não nos podemos esquecer que a nível do poder local, existe um antes e um depois da Revolução do 25 de Abril. Um antes, marcadamente conservador, antidemocrático e corporativista; e um depois, inicialmente revolucionário e festivo, radical e igualitário, de esquerda e utópico que teve de co-habitar com as estruturas conservadoras típicas de uma sociedade rural, mesquinha, injusta e submissa à Igreja e aos poderes económicos locais que resistiam aos ventos da mudança.

As estruturas religiosas, os grémios da lavoura, os grupos de folclore e algumas famílias com influência na terra continuavam a manter viva essa cultura clientelar que garantia a ordem social com destaque para o “respeitinho” entre as classes. As Igrejas locais conservadoras continuavam a ser a voz da rectaguarda, reacionárias no credo e na prática, faziam do púlpito e do confessionário as suas armas contra as mudanças de abril.

Aqui e ali, algum jovem padre era a voz da mudança, o exemplo da nova palavra, da nova eucaristia, muitos deles rotulados de “padres vermelhos” por serem a voz renovadora de um Cristo popular e humanista, ao serviço das classes desfavorecidas. A Igreja renovada corta com as elites locais, com a folclorização das imagens, afasta o beatério da sacristia e desloca-se para os problemas reais da vida, aproxima-se dos operários e dos estudantes, rompe com o catolicismo assistencialista que dominava o espaço local e servia os desígnios do Estado Novo e de Salazar.

A passagem para o regime democrático em Arouca obedece a duas fases distintas, mas complementares. A primeira fase, que podemos identificar como de “mudança-contínua” – vai da Comissão Administrativa até à eleição de Zeferino Brandão em 1976 pelo PPD/PSD; a segunda fase, da “consolidação democrática”, vai do mandato de Joaquim Brandão de Almeida (PSD) até à eleição pela primeira vez de Armando Zola pelas listas do Partido Socialista. Na primeira fase, temos um PPD/PSD apoiado nas velhas estruturas que representavam o Estado Novo e davam garantias de sucesso eleitoral contra a onda revolucionária que se vivia em Portugal. Zeferino Brandão era o candidato que melhor representava esse país marcelista, capaz de fazer a “mudança” tranquila de um país velho e conservador para um país democrático, digno e justo.

A segunda fase, tem início com o mandato de Joaquim Brandão de Almeida, com uma política centrada nas grandes infraestruturas, rede de eletricidade, de água pública, saneamento, escolas e mobilidades. Foi neste mandato que a cultura e a educação se transformam em elemento estrutural das grandes opções de plano com a criação da Biblioteca Municipal integrada na Rede Nacional de Bibliotecas. Mas é com a eleição de Armando Zola (1993-2005) nas listas do PS para presidente de câmara de Arouca que assistimos à consolidação dos valores da Revolução do 25 de Abril com uma aposta clara e definitiva na cultura, no património e na educação. Esta nova fase arranca com a elaboração do Plano Estratégico para o Concelho de Arouca (1995).

Armando Zola é o representante de uma juventude universitária de esquerda que desperta para a política antes do 25 de Abril, que faz a sua militância activa e progressista na esquerda social-utópica durante as primeiras décadas do pós-25 de Abril 74, encabeçando as listas para a Assembleia Municipal e Câmara sem sucesso. Durante as primeiras décadas de controlo político pela direita (CDS) e (PSD/PPD) com maiorias absolutas na Assembleia e Câmara de Arouca Zola e seus companheiros são renegados para um plano marginal na vida autárquica. Estes jovens militantes da esquerda social utópica sofrem as consequências da incompreensão das estruturas familiares e societais conservadoras que ainda dominavam a vida económica, social e religiosa local. Contudo, a sua capacidade de resistência e de luta política, a sua criatividade e lucidez intelectual irão permitir a Zola e seus companheiros a organização de um movimento independente de Arouca (PDA – Pelo Desenvolvimento de Arouca) que está na origem da sua eleição integrando as listas do Partido Socialista.

A eleição de Armando Zola representa pela primeira vez a vitória dos “verdadeiros valores de Abril” e a derrota das estruturas conservadoras que vinham na continuidade do anterior regime. O primeiro mandato de Zola representa o virar da página, em direção a uma sociedade progressista e humanista. A vida política local entra num novo ciclo político e social, com novas personagens a dominar e a influenciar a vida dos arouquenses.

Foi possível romper com a continuidade, apresentar novos valores, novos programas e novas personalidades. A juventude “revolucionária” de Arouca conquista o poder pela primeira vez. Passados uma década e alguns anos do fim do mandato Zola, assistimos a um “oceano de contradições” na vida política local. O PS apresenta-se exausto e sem vitalidade, a oposição encontra-se num estado de incertezas e procura novas lideranças capazes de alavancar uma nova fase de desenvolvimento para Arouca. O concelho continua laranja e conservador para as eleições nacionais e cor-de-rosa para as eleições locais. A geração dos anos 90, com formação e com experiência anda dispersa pelo país e pelo mundo, a outra encontra-se em Arouca e preocupada com o ganha-pão não se sente mandatada para servir e dar a mão à causa pública. Fernando Matos Rodrigues

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