Por muito paradoxal que possa parecer, a transferência de competências para as câmaras municipais (uma espécie de regionalização sem o ser) não foi um avanço, mas um retrocesso, um quase regresso ao passado. A gestão da água e da electricidade eram, em tempos, da responsabilidade das câmaras, a par da educação e da saúde (que entretanto foram, e entretanto voltaram). Para além do desafio de gerir recursos humanos em áreas de actuação tão díspares, e do correspondente aumento das despesas correntes (porque é preciso pagar salários e providenciar condições de trabalho), aumenta também exponencialmente a exposição à crítica e ao descontentamento, que, antes, para manifestarmos, tínhamos como horizonte o Porto, ou Aveiro, ou Lisboa, ou um qualquer ‘call center’ automático. Agora, tudo é mais fácil. No próprio local onde as coisas não estiverem a funcionar, podemos criticar, e esperar que a proximidade ajude a resolver.
Vem isto a propósito de um artigo publicado na ‘Defesa de Arouca’ de 18 de Fevereiro de 1967, sem assinatura, com o título ‘É preciso dar pancada na Câmara’. E começa logo por dizer ao que vem: ‘Não há serviços nem encargos que não recaiam sobre as Câmaras, necessidades que elas não tenham a obrigação de prover e remediar’. A partir daqui, desfia o rol de obrigações. Prover hospital para cuidar da saúde e ‘asilos de vária ordem, sempre que lhos requeiram’, para além da disponibilização dos ‘partidos médicos’ (os médicos municipais). A ‘construção e reparação de todas as estradas e caminhos, de todas as ruas, largos e praças, de pontes e pontões, em toda a vasta área do concelho’. A construção, reparação e equipamento ‘de todos os edifícios escolares’, com as respectivas ‘despesas a seu cargo’. O abastecimento de água, e respectiva manutenção das condutas. O ‘abastecimento e distribuição de energia eléctrica, para luz pública e particular’, bem como a manutenção das linhas, e ‘assegurar-se a eficiência do serviço’. O ‘equipamento de todas as repartições públicas’. Tudo isto, e mais alguma coisa, que fazia (faz?) com que os ‘encargos pesem sobre as Câmaras e esmagam as suas finanças por forma incomportável’. Muitas destas responsabilidades deixaram de recair sobre as câmaras, mas muitas outras passaram a fazer parte dos seus encargos, o que contribui para que seja mais fácil criticarmos por se fazer do que mostrarmos formas alternativas de se fazer.
Convém relembrarmos que o texto é de 1967, não vá pensar-se que está a acabar de ser escrito. ‘Tudo se pede às Câmaras, até as coisas mais insignificantes e simples, que pouco trabalho dariam aos particulares a resolver e quase nenhuma despesa’. E, mais à frente, ‘A Câmara tem de ser a providência que tudo há-de resolver, que a tudo há-de acudir, possa ou não possa, tenha ou não tenha meios, que disso não se cura de saber. Todos pedem, todos reclamam, todos exigem e querem ser atendidos, mas, quando o são, poucos agradecem. O que se fez, feito está, nisso não se pensa nem, ao menos, é lembrado. Nem os melhoramentos mais importantes são lembrados e faz-se de conta que não existem’. De facto, o alargamento das competências das Câmaras fez com que, de repente, se achasse que tudo é da sua responsabilidade, até o que deveria ser da nossa, de cada um. E talvez seja também por isso que, hoje, qualquer acto de cidadania ou de participação mais activa nos fóruns decisores ou fiscalizadores é algo de altamente louvável (porque raro), em vez de ser considerado normal (se fosse frequente).
Segue o texto, e melhor conclusão não se encontrará: ‘mas o que a alguns dá ainda mais prazer é bater na Câmara, é agradecer-lhe dessa maneira os serviços que presta’. E segue um exemplo, que o autor do texto transcreve, de um leitor que terá dito: ‘Olhe lá… veja isso… de vez em quando, é preciso dar pancada na Câmara’.