Bento XVI: ‘In memoriam’

Há muito tempo que desejava escrever este texto. Primeiro, pensei escrevê-lo por ocasião do falecimento de Bento XVI / Joseph Ratzinger (31 de Dezembro de 2022). Como não se propiciou, então imaginei que seria no primeiro aniversário do seu falecimento. Os afazeres pastorais não o permitiram; escrevo agora, por ocasião do segundo aniversário da sua partida para a eternidade.

Primeiro, uma declaração de interesses: fui e sou um admirador de Bento XVI. Obviamente, e no contexto das «fricções» (para ser suave) que se vivem actualmente dentro da Igreja, cabe dizer que a admiração que sinto por Bento XVI em nada belisca a consideração (e a obediência, como padre) devida ao papa Francisco. São homens diferentes, que servem a Igreja em momentos diferentes. Estou convencido que cada um deles se tem manifestado o «homem certo no momento certo».

Esclarecido este ponto, vamos então a Bento XVI. Da sua imensa figura, gostaria de realçar três aspectos, três dimensões deste colosso que marcou a Igreja dos séculos XX e XXI.

Cardeal Joseph Ratzinger

Inteligência da fé

Joseph Ratzinger foi um homem inteligente, muito inteligente. Além de padre, foi professor universitário (e nunca se coibiu de revelar o quanto sentia interiormente que a sua vocação sacerdotal se declinava no ensino da Teologia) e um professor de sucesso. As suas aulas foram sempre das mais concorridas e tinha autênticas multidões de jovens universitários que iam onde fosse preciso apenas para o ouvir. Segundo testemunhos da época, impressionava a sua forma desassombrada de expor a fé cristã, mesmo nos seus aspectos mais complexos, sem nunca deixar de fazer a ligação à vida concreta. Precisamente por causa desta preocupação permanente de ligar a fé à vida, em Ratzinger não se pode falar propriamente de uma inteligência ao serviço da fé, mas de uma autêntica inteligência da fé. A fé, embora conservando aspectos incompreensíveis, porque não revelados, é essencialmente algo inteligível: a fé pode discutir-se, pode sempre argumentar-se contra e a favor dela; aliás, uma fé que não se apoiasse na razão, já não seria fé, mas quando muito um fanatismo. O fanatismo é o contrário da inteligência; por isso mesmo, é também o contrário da fé. Nos escritos de Ratzinger / Bento XVI, transparece o esforço por apresentar a plausibilidade da fé e, sobretudo, da pessoa de Jesus Cristo (a trilogia final Jesus de Nazaré é o ápice de uma vida académica inteira dedicada ao cristianismo). Bento XVI percebeu isto com muita clareza: se Jesus Cristo cai, então tudo cai. Se Ele já não é credível, se já não é levado a sério, então nada mais tem importância. Consciente disto mesmo, Bento XVI envidou todos os esforços para o diálogo com o mundo contemporâneo: com as outras confissões cristãs e com as outras religiões, com o mundo universitário (que ele conhecia como ninguém), com o mundo da cultura, com o mundo da ciência. Particularmente neste campo, a velha dicotomia fé / ciência, que de por si já é uma construção artificial e pouco inteligente, perante os escritos de Bento XVI perde todo o sentido.

Padre Joseph Ratzinger (primeiros anos)

Coragem

Sem dúvida, este é um dos traços mais definidores da personalidade de Ratzinger. Basta mencionar meia dúzia de momentos da sua vida que bem o mostram. Pense-se na sua intervenção durante o Concílio Vaticano II (como perito teológico ao serviço do cardeal Joseph Frings, Ratzinger foi um dos maiores responsáveis pela mudança de rumo dos trabalhos conciliares, marcando decisivamente o rumo que o Concílio haveria de seguir) ou na postura que assumiu após o encerramento do Concílio, defendendo as decisões e orientações que aí haviam sido delineadas contra todas as derivas e abusos que começavam a emergir. Vem dessa época a fama de Ratzinger, da qual nunca se livrou, de «reacionário», «conservador» e «antiquado» – não deixa de ser irónico que essas acusações tenham sido feitas a uma das mentes mais desempoeiradas do nosso tempo… Pense-se no árduo trabalho ao longo dos muitos anos como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (1980-2005), num tempo de muitos egos; ou na tarefa ingente que lhe foi confiada ao ser eleito papa. Apesar de tudo o que já foi dito e escrito, neste momento, só por ignorância ou má fé se pode continuar a querer colar a imagem de «encobridor de pedófilos» a Bento XVI; em boa verdade, foi ele que teve a coragem de dizer: «Basta!». O papa Francisco tem repetido vezes sem conta: «[No que diz respeito ao combate à pedofilia dentro da Igreja] eu apenas continuo o que Bento XVI começou». O pontificado de Bento XVI ficou também marcado pela tentativa (falhada) de restaurar a «Paz Litúrgica», particularmente no que diz respeito aos sectores mais tradicionalistas e afastados de Roma. Também aí foi precisa uma boa dose de coragem: não é qualquer um que tem a coragem de manter a mão da reconciliação estendida, mesmo quando todos dizem para não o fazer e aqueles a quem se estende a mão apenas lhe cospem.

O papado de Bento XVI ficou, sem dúvida alguma, marcado pelo facto de ter renunciado a ele. Esse talvez tenha sido o gesto mais corajoso de todos; e sempre debaixo de fogo (muitos, com indisfarçável maldade, apressaram-se a dizer que renunciar ao papado fora a única coisa «de jeito» que Bento XVI fizera como papa). Mas não é só o acto de renunciar ao papado: é também a coragem de se colocar inteiramente à mercê do sucessor. A lealdade mútua entre Bento XVI e Francisco foi das coisas mais belas a que a Igreja contemporânea pôde assistir. As palavras e os gestos de Francisco no funeral de Bento XVI foram eloquentes. Conta o papa Francisco que Bento XVI, depois da resignação, sempre que era visitado por elementos críticos do seu sucessor, assim que estes abriam a boca para o elogiar [a Bento XVI] e criticar Francisco, eram «despachados» em três tempos pela porta fora…


Simplicidade e Oração

A simplicidade vê-se; a vida de oração não se vê. Mas quando há vida de oração, isso transparece na simplicidade da pessoa. De Bento XVI, são unânimes quantos viveram com ele de perto: era um homem extraordinariamente simples. Simples nos seus gostos, simples nas suas rotinas. E simples também na sua maneira de falar. Termino, pois, com um pequeno texto de Bento XVI acerca do Natal. Um texto simples pela sua formulação, profundo pela oração que lhe está subjacente.

«Vinde, Senhor Jesus! […] A liturgia acompanha e apoia o nosso caminho interior com repetidos convites a acolher o Salvador, reconhecendo-o no humilde Menino que jaz numa manjedoura. É este o mistério do Natal, que tantos símbolos nos ajudam a compreender melhor. Entre eles encontra-se o da luz, que é um dos mais ricos de significado espiritual, e sobre o qual gostaria de me deter brevemente. A festa do Natal coincide, no nosso hemisfério, com os dias do ano em que o sol termina a sua parábola descendente e começa a aumentar gradualmente o tempo de luz diurna, segundo o recorrente suceder-se das estações. Isto ajuda-nos a compreender melhor o tema da luz que antecipa as trevas. É um símbolo que recorda uma realidade que atinge o íntimo do homem: refiro-me à luz do bem que vence o mal, do amor que supera o ódio, da vida que derrota a morte. O Natal faz pensar nesta luz interior, na luz divina, que nos volta a propor o anúncio da vitória definitiva do amor de Deus sobre o pecado e a morte. […] Ao prepararmo-nos para celebrar com alegria o nascimento do Salvador nas nossas famílias e nas nossas comunidades eclesiais, quando uma certa cultura moderna e consumista tende a fazer desaparecer os símbolos cristãos da celebração do Natal, seja compromisso de todos colher o valor das tradições do Natal, que fazem parte do património da nossa fé e da nossa cultura, para as transmitir às novas gerações. Em particular, ao ver estradas e praças das cidades enfeitadas com luzes resplandecentes, recordemos que estas luzes evocam outra luz, invisível aos olhos, mas não ao coração. Enquanto as admiramos, ao acendermos as velas nas igrejas ou a iluminação do presépio e da árvore de Natal nas casas, o nosso ânimo se abra à verdadeira luz espiritual trazida a todos os homens de boa vontade. O Deus connosco, nascido da Virgem Maria em Belém, é a Estrela da nossa vida!» (Bento XVI – Audiência. 21 de Dezembro de 2005). Pe. José Pedro Novais

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