Umberto Eco é um estudioso reconhecido pelos seus romances, mas sobretudo pela sua dedicação à investigação sobre a Idade Média. Essa sua faceta, levou-o a estudar com bastante profundidade os signos, os sinais, os significantes e os significados, e talvez seja o motivo pelo qual só iniciou a sua produção romancista aos 50 anos. Ainda assim, o primeiro romance, ‘O Nome da Rosa’, tornou-se uma referência, muito por força de ter aí confundido, com especial arte, realidade com ficção, trazendo uma para dentro da outra, misturando as duas, e produzindo um resultado magistral.
Recentemente, foi publicado um pequeno livro que reúne algumas conferências que Eco proferiu nos Estados Unidos, sobre o que ele considera ser ‘a arte da imaginação’ e ‘o poder das palavras’, essa saudável confusão entre uma realidade que é quase ficção e uma ficção que é quase realidade. O livro chama-se ‘Confissões de um Jovem Escritor’, porque, à data das conferências, e apesar da sua idade, Eco considerava-se um escritor jovem, por ter-se lançado na ficção já relativamente tarde.
A determinado passo, põe-nos a reflectir sobre como uma personagem de ficção ganha contornos de realidade, múltiplas formas até, de tão forte que é. É assim com o Capuchinho Vermelho, ou com Anna Karenina, ou outras personagens, cuja história é universal, conhecemos quase ao detalhe o percurso das suas vidas, e assim, de tão ficcionais, passaram a ser reais para nós. O Capuchinho Vermelho é uma criança, que tem um capuz vermelho, tem uma avó e vai, mais tarde ou mais cedo, confrontar-se com o Lobo. Anna Karenina é uma mulher de rara beleza, a braços com casos extra-conjugais, e, fruto de toda a pressão psicológica, acaba por se suicidar, atirando-se para a frente de um comboio em andamento. Por muito ficcionais que estas personagens sejam, elas já ganharam vida para nós, ao ponto de quase conseguirmos dar-lhes rostos.
Esta é uma questão particularmente interessante, a forma como conseguimos facilmente trazer para a realidade aquilo que, há muito tempo, foi imaginado por alguém. Dos mitos, aos contos, até aos romances do realismo literário, fomos criando personagens vivas, que mais não são do que frutos do imaginário. Mas nem sempre resulta bem querermos transformar a ficção em realidade, porque para isso acontecer, é preciso que haja alguma ligação entre os dois mundos.
Quando não falamos de literatura, mas de documentos de planeamento, frios, racionais, previsionais, é mais difícil termos este espectro de interpretações. Ali, a realidade é ou não é. Qualquer interpretação mais fantasiosa, não passa disso mesmo. De uma fantasia, de uma mentira. E as personagens de quem falámos não são mentiras. Ao olharmos para um documento que se quer factual, racional, construído sobre números, é arriscado querermos transformar em realidade algo que, estando a zeros, poderá não ser ficção, mas (sem densidade) não poderá existir. Quando se pede que se planeie algo a vários anos, não basta ficarmos no plano das intenções. É preciso que elas se traduzam em números e, consequentemente, em acções. Se quem criou as personagens só tivesse dado o nome ao Capuchinho Vermelho ou a Anna Karenina, elas ficar-se-iam pelo nome. Não seriam esta ‘realidade’ que lhes reconhecemos. Portanto, não basta criar as personagens, é preciso dar-lhes corpo. Ou, traduzindo isto para o documento frio, é preciso colocar números nos anos em que queremos investir. Mas, como diria Umberto Eco, e colocando-nos no campo da ficção, cada leitor acreditará no que quiser.