ARMANDO ZOLA
|
|
|
Realidade e ficção - "Todo o mundo é composto de mudança"
|
|
OPINIÃO | Para deles me aproximar e os poder acompanhar, o meu esforço teria de ser superior ao seu
|
|
Apressei o aprendizado da leitura, nos meus primeiros tempos de escola, para saber, por mim mesmo, como iam as disputas entre Ribeiro da Silva e Alves Barbosa, no ciclismo, entre Coluna e Águas com Pedroto e Jaburu ou com Travassos e Peyroteo, no futebol, ou as façanhas do Portugal de Adrião, Velasco e Bouçós, no hóquei em patins, lendo os velhos "Primeiro de Janeiro" e "Comércio do Porto" nas duas mercearias - coisa que então havia por quase todo o lugar - que ladeavam a minha casa. O gosto de ler que aí se iniciou e se aprofundou nos anos passados na Escola Primária e, depois, nos agora extintos Colégio de Santo António e Externato de Santa Mafalda, não bastou para que, saído de Arouca para o Porto, de início se me tornasse perceptível e apreensível a conversação que fluentemente travavam com os nossos professores, especialmente de Filosofia e Psicologia, os meus novos e mais desenvoltos condiscípulos do então Liceu Nacional de D. Manuel II, nascidos e criados em meio social e cultural mais favorável. Para deles me aproximar e os poder acompanhar, o meu esforço teria de ser superior ao seu. Ao, aí, nosso velho Professor de Literatura Portuguesa ouvi, então, proferir que, para além do estudo atento e cuidado da "História da Literatura Portuguesa", de Óscar Lopes e António José Saraiva, que, no seu dizer, era, nesse domínio, o que de melhor se havia editado em Portugal, o modo mais adequado e eficaz de se enriquecer o vocabulário, melhorar a conversação, compreender a literatura e a própria vida nas suas diversas vertentes, era ler, ler sempre, e, no caso da literatura portuguesa, ler os nossos autores, o mais que pudéssemos. Fui por aí, li o mais que pude e, volvido o tempo bastante, passei a sentir-me bem entre os meus condiscípulos e no contacto com os professores. Desde as cantigas de amigo e de amor até à contemporaneidade, li muito da maior parte dos nossos mais consagrados autores, nos mais diversos géneros literários, com predominância nos ficcionais. Após o Liceu, fui deixando progressivamente a ficção, mesmo de autores estrangeiros que, durante alguns anos privilegiei, para passar a privilegiar a leitura, menos atractiva e encantatória, é certo, de obras, trabalhos e estudos sobre a realidade da vida, tal como ela é, na diversidade das múltiplas áreas em que se desdobra, ocupando aí, por longos períodos, papel dominante, a do Direito, onde, tantas vezes, a dura e dolorosa realidade mais parece - oxalá fosse! - ficção. E a verdade é que, assim, uma das falhas com que cheguei ao tempo presente foi a de pouco ter lido de um dos mais celebrados ficcionistas contemporâneos da língua portuguesa: Aquilino Ribeiro. Tinha de ler "O Malhadinhas". Lera, por mais que uma vez, no longevo e já desaparecido semanário arouquense "Defesa de Arouca", que parte do enredo dessa novela se passava em Arouca. Comprei o livro, já lá vão perto de 25 anos, nos Claustros do Mosteiro de Arouca. Foi naquela sucessão de anos em que a Feira do Livro e a Semana Cultural de Arouca se fizeram. Lembram-se? Li-o agora. A cerrada linguagem rústica, eivada de gíria, não facilita a leitura, mas, entrando-se nela, a mestria da escrita conduz-nos irresistivelmente até ao final do texto. E, com que volúpia, li, saídas da pena de Aquilino, palavras e expressões que, antes, apenas ouvira, em criança e quase só de minha avó, que não frequentara a escola, nem sabia ler! O uso e manejo das palavras e a leitura que proporcionam deliciam. Porém, o percurso de vida do António Malhadinhas que Aquilino, sem sensíveis reparos, descreve, é um atentado constante aos valores prevalecentes na sociedade de hoje: em Arouca, Malhadinhas é ingrato; noutros lugares, sempre de faca afiada, esfaqueia e provoca aleijão para toda a vida; na sua terra, com violência sequestra a prima, com violência a viola e à força a carrega no seu "macho" e a conduz, por montes e vales, até um padre cúmplice, para que, com ele, a case, e assim, casada, violada e "desonrada" a oposição dela e do pai, tio dele, seja vencida. A besta humana continua, e de que maneira, por aí. Mas, como, desde então, mudaram os tempos! Às vezes para melhor. Hoje, Malhadinhas, ao aproximar do fim de seus dias, não passaria, tranquilamente, sem sentir, como descreve Aquilino, "para a outra margem do negro rio", sem antes responder e pagar por seus actos violentos, animalescos e por lei duramente sancionáveis.
|
|
|